terça-feira, 10 de novembro de 2015

Cheiro de chocolate e outras histórias - Roniwalter Jatobá

Nos idos de 1975-1976, ainda antes de ingressar na faculdade, eu era um dos assíduos leitores de uma revista literária que marcou época: "Escrita", publicação da Editora Vertente e dirigida pelo escritor Wladyr Nader. E foi numa das edições mensais da "Escrita" que conheci o trabalho de Roniwalter Jatobá de Almeida - um pequeno volume em papel-jornal, encartado à revista, encadernado com grampo e com as dimensões de um gibi do Pato Donald e com o estranho título Sabor de Química. A obra havia obtido o primeiro lugar no concurso de contos daquela revista. Dois anos mais tarde, com suas Crônicas da Vida Operária, Roniwalter seria um dos finalistas do famoso prêmio "Casa das Américas", de Cuba, tendo sido mencionado por ninguém menos do que Jorge Luís Borges. 
Foi por volta de 1977 ou 1978 que vim a conhecê-lo pessoalmente, quando fui, com um grupo de amigos que estudavam comigo no Largo São Francisco, entrevistá-lo para a nossa revista universitária. 
Estou agora com um novo livro de contos nas mãos - um dos vencedores do Prêmio Jabuti de 2013: Cheiro de chocolate e outras histórias. O título evoca imediatamente a sua obra de estreia, não apenas pelas relações sinestésicas (sabores e cheiros) mas pelo objeto sentido: a cidade de São Paulo. 
O "sabor" da comida contaminada por produtos químicos da poderosa e avassaladora "Nitroquímica" - indústria que se instalou no distante bairro de São Miguel Paulista, Zona Leste de São Paulo, nos idos da década de 1950, e que, em seu primeiro dia de funcionamento, causou a morte biológica do Rio Tietê. Já no conto que dá o título ao novo livro de Roniwalter, o cheiro não vem da periferia, mas do luxuosíssimo bairro do Itaim Bibi. É, mais do que cheiro, perfume que vem à memória de um personagem que teria frequentado a região na época em ali funcionava a antiga fábrica de chocolates Kopenhagen. 
Pode-se dizer, portanto, que ainda estamos lendo Roniwalter Jatobá - mas agora quem fala é um escritor consagrado, autor de dezenas de livros. Um autor que faz questão de manter vivas as lembranças das primeiras sensações que teve ao chegar a São Paulo (o conto "Aves de arribação" é uma micro-saga da vida dos imigrantes brasileiros, sobretudo - mas não apenas - dos nordestinos) mas que já não se constrange em também situar sua ficção em cenários frequentados pelo que há de mais típicos na elite paulistana: da Rua Joaquim Floriano à Avenida Paulista.


sábado, 7 de novembro de 2015

O homem-mulher - Sérgio Sant'Anna

"O homem-mulher" é o mais recente livro do escritor carioca Sérgio Sant'Anna e reúne dezenove contos. O autor é reconhecidamente um dos maiores ficcionistas brasileiros. Sua primeira obra publicada o livro de contos "O sobrevivente", no ano de 1969. Desde então venceu, com muita justiça, diversos prêmios literários: Jabuti, Portugal Telecom de Literatura Brasileira e Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional.
Sérgio Sant'Anna é carioca. Nasceu no Rio de Janeiro em 1941. 
É o segundo livro que leio dele. Há mais ou menos quinze anos eu havia lido com certo prazer o romance "Um crime delicado" (lançado em 1997). Os contos de Sérgio Sant'Anna, porém, são um caso à parte e a minha vontade é de entrar no site da Amazon e encomendar todas os seus livros em estoque com a máxima urgência. 
Controlo minha compulsão consumista para deixar registradas minhas primeiras impressões sobre o que estou lendo.
O livro tem 183 páginas e é uma publicação da Companhia das Letras. 
O conto que abre o livro é o que lhe dá o título: O homem-mulher. Em cinco páginas, Sérgio Sant'Anna conta a aventura sexual de Adamastor Magalhães, que preferia ser chamado de Fred Wilson e que se vestia de Claire (personagem da peça "As criadas", de Jean Genet) num certo dia de carnaval. Ele então se encontra com uma menina chamada Dalva, os dois cheiram lança-perfume e vão transar no cemitério. A descrição fria de sexo explícito sem absolutamente nenhum erotismo atordoa e quase leva o leitor a nocaute. Há um evidente diálogo com a obra mencionada de Genet e que mereceria um desenvolvimento mais alentado que não cabe nesta simples resenha. O desfecho do conto é perfeito para o fim a que o contista se propôs. 
Saio desse primeiro conto acreditando que vem mais do mesmo. O nome do conto é Lencinhos, o que sugere mais um lenço encharcado de éter. No entanto, em comum com o primeiro conto, somente o nome antiquado do personagem principal - Teóphilo ou, simplesmente, Téo. A narrativa é em primeira pessoa. Téo é um cinquentão aposentado. Formou-se em Direito mas não seguiu nenhuma carreira jurídica consagrada - Magistratura, Ministério Público ou Advocacia. Contentou-se em ser funcionário público da Justiça do Trabalho (como eu fui por um ano e um mês, quando tinha 25 anos). Casou-se, teve uma filha, divorciou-se e agora é um velho solitário caminhando pelo largo do Machado, indo a pé do consultório da dra. Lisete, sua dentista, até seu apartamento na rua Senador Vergueiro. Com a boca anestesiada, ouve uma voz feminina, muito suave, que sussurra às suas costas: "Não quer ver uns lencinhos, senhor?". Essa é Manoela, mulher de João, que irá mudar sua vida. Em 36 páginas, transcorre uma narrativa comovente que em tudo contrasta com o conto de abertura, em especial pela magistral e delicada exploração de temática erótica.
O terceiro conto é Um retrato. Da mesma forma que em Lencinhos, Sérgio Sant'Anna fala aqui também da solidão. Não, porém, a conjugal, mas a filial. É um conto sobre a orfandade do homem adulto, sobre a perda do pai e sobre a presença da mãe (que morreu quando ele ainda tinha cinco anos) no imaginário dos dois - pai e filho. 
A Madona, quarto conto do livro, tem apenas duas páginas. O enredo é de uma falsa simplicidade: o membro de uma quadrilha de quadros reflete sobre a inutilidade do roubo de algumas telas conhecidas de Edward Munch - "O Grito" e  "A Madona" (ilustração ao lado). Sendo as telas tão famosas, nenhum colecionador poderá exibir para terceiros as obras. Assim, terá que escondê-las para sempre e usufruir delas em segredo. É o que faz o ladrão frustrado que, diante desses dois quadros, se pergunta se suportaria, sem se destruir, a dor de conviver interminavelmente com o quadro "O Grito" se não tivesse também roubado "A Madona".